segunda-feira, janeiro 03, 2011

Minha Paciente


Sábado a noite, plantão, Natal, tumulto.
Quando cheguei você já estava lá. Aguardava exames.
Temos a mesma idade. Teríamos os mesmos sonhos?
Sorri, você retribuiu meu sorriso.
Pareceria tão serena, não fosse o enorme esforço respiratório.
Cada insipiração parecia uma batalha.
Pele pálida, boca seca.
Oxigênio a ajudava a respirar.
Quando te vi eu sabia o que estava errado.
Um êmbolo insignificante obstruira um vaso sanguíneo de seu pulmão.
Aguardaríamos os exames.
Nos gostamos naquele instante. Essa estranha identificação.
Poderíamos ter nos conhecido em outra ocasião.
Poderíamos ter sido amigas.
Mas a vida nos aproximou naquela noite.
O câncer de mama lhe consumia. Invadira seus ossos.
A quimioterapia causou uma aplasia em sua medula.
Não produzia mais as células sanguineas da forma necessária.
Queria ter conversado mais. Porém outros pacientes me aguardavam.
Cada pessoa é tão vasta. Cada vida é tão rica, da sua maneira.
A sua estava acabando e isso nós duas sabíamos.
Será que temos uma percepção diferente do tempo quando sabemos que ele está chegando ao fim?
Os exames chegaram.
Eu estava certa. Queria estar errada.
O que há de tão especial em acertar um diagnóstico afinal?
Onde está a poesia da medicina?
Você precisava de anticoagulantes. E suas plaquetas estavam tão baixas...
Fiquei por alguns minutos olhando aquele pedaço de papel.
A sala antes barulhenta tornou-se silenciosa para mim.
Ouvia apenas minha respiração e meus pensamentos.
Eu tinha sua vida em minhas mãos.
Dar a medicação e tratar a embolia, correndo o risco de sangramento que suas mínimas plaquetas não conseguiriam controlar.
Não dar e, impotente, observar o curso natural de sua doença.
Lembrei de outra paciente, mais jovem que nós a quem fui fazer uma visita pré-operatória.
Sentada em uma poltrona desconfortável em uma enfermaria com mais quatro pacientes.
Vestia uma camisola amarela, um sorriso cativante.
Invadida por um agressivo tumor de tireóide já disseminado.
A morte ali, sentada ao seu lado.
A mãe aflita, agarrada a esperança de que a quimioterapia a salvaria.
Quantas vidas destruídas.
Eu vou ficar bem, não vou?
Qual a resposta certa?
Qual meu papel como médica?
Paliativo de sofrimento?
O que fazer quando não há cura e a morte de uma jovem é o inevitável?
Queria poder arrancar esses tumores e lhes devolver a vida!
Voltei com o resultado dos exames.
Lágrimas nos olhos, você achava que era apenas a anemia.
É grave?
Não precisava do meu sim.
Meus olhos te diziam a resposta.
Os seus me falavam o seu sofrimento.
O dia amanheceu, o plantão acabou.
Eu fui embora, você ficou.
Um mesmo lugar. Duas jovens mulheres. Uma escolha, uma fatalidade.
Eu quis ser médica.
Você não quis um câncer de mama.
Quem pode explicar os propósitos da vida?
Curioso. Tantas pessoas passam e poucas ficam.
Você, ficou.
Ficou e questiona a medicina em mim.
Posso simplesmente tirar meu jaleco, guardar o estetoscópio e seguir?
Não, você me mudou de alguma forma.
E quando penso, uma escolha...
Eu sabia que não seria fácil. Não imaginava que as vezes ficaria tão difícil assim.

Espero que você esteja bem, seja lá o que isso significa.

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