domingo, janeiro 23, 2011

A Medicina Perdida


Uma tarde como outra qualquer.
Um plantão movimentado.
Início da minha vida médica.
O telefone toca, venha até a Emergência!
Agarro meu estetoscópio, coração acelerado.
Sim, o medo, reflexo da minha inexperiência.
Uma senhora em franca insufiência respiratória.
Uma bactéria se alojara confortavelmente em seus pulmões.
Brincando e multiplicando-se no debilitado organismo de quase 80 anos.
Nos olhamos, assustadas.
Coloquei meu estetoscópio em seu peito, que lutava para respirar.
Olhava para o monitor, 76% de saturação de oxigênio.
Eu sabia o que fazer. Saberia como?
Respirei fundo, tentando controlar minha ansiedade.
Precisava de clareza para objetivar minha atitude.
Agora eu era a médica.
A equipe de enfermagem me aguardava.
Os segundos tornaram-se longos, todos olhavam para mim.
Olhei para minhas inexperientes e trêmulas mãos.
Um breve pensamento dizendo 'fuja'.
Eu fiz o meu melhor.
Era grave.
Ela agora respirava com a ajuda de um aparelho.
Precisava de drogas vasoativas para manter seu sangue circulando.
Eu sentada na Emergência, buscando um leito de UTI.
Outros pacientes lá fora, me aguardando.
Os intermináveis segundos, viraram minutos e os minutos em horas.
Minha paciente 'parou'!
Meus olhos se depararam pela primeira vez como médica com a ousada linha reta na monitor cardíaco.
Ela me olhava, quase rindo, dizendo, prazer sou a assistolia!
Protocolos, drogas, aulas de faculdade passavam como um turbilhão em minha cabeça.
Vencemos ela, quatro vezes.
Mas não na quinta...
Silêncio.
A morte abraçou minha paciente.
Levou uma esposa, uma mãe, uma avó.
Levou uma amiga, estórias vividas.
Eu perdi minha primeira paciente.
Olhei para o chão, devastada.
Eu fiz o que eu pudia. Fiz o que eu sabia.
Outro teria feito melhor?
Olhei para o relógio na parede. Teria ainda mais 3 horas de plantão.
Conseguiria?
Teria de dar a notícia mais difícil da minha vida.
Um filho e uma filha, a mãe faleceu.
Choramos, os três.
Quem foi mesmo que disse que médico não pode chorar?
E foi nesse mesmo dia que entendi a medicina perdida.
Pacientes, impacientes me esperando!
Reclamações na recepção. Ameaças infundadas que seriam feitas a direção.
Estava dormindo? Alguém me perguntou.
Uma pessoa morreu, queria gritar!
Resignada, fui atropelada por grosserias!
Resfriados, dores de barriga, dores de cabeça, um pedido de receita!
A relação médico-paciente foi pro ralo.
Suas bases, a empatia e o respeito viraram uma utopia.
Seria assim a medicina?
Já em casa chorei.
Chorei pela vida perdida em minhas mãos.
Chorei pelo lado cruel do ser humano.
A intolerância, a incompreensão.
Teria a indiferença tomado conta de nós?
E eu que sempre fui contra chamar pacientes de clientes, a medicina como um banalizado serviço prestado!
Não! Ser médico é muito mais que isso!
É olhar no olho! É segurar na mão.
Auscultar e escutar um coração.
Uma palavra de conforto.
O alívio da dor.
Simplesmente estar junto, mesmo em silêncio.
Pacientes não são uma discussão de caso clínico.
O que aconteceu com as relações humanas?
Se pudessemos resgatar, essa é a essência da medicina.
Os hospitais superlotados, a extenuante jornada de trabalho...
Talvez, só talvez... ficasse um pouco mais fácil.
Parece tão simples.
Afinal, depende de nós, médicos e pacientes.

Ou serei ainda uma jovem médica sonhadora?

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